4.12.05

Uma mesa... como pretexto


Uma mesa. A sua volta algumas cadeiras e uma cidade com tudo que preenche, não sem sufocar um pouco: embalagens de pipoca amanteigada compelidas a lugar nenhum pelo vento. Vento úmido de água e fuligem que, sem nenhuma pretensão, também sopra a fumaça de cigarros sempre na cara de quem os odeia – como se a percepção fosse uma reação alérgica.

Entre o meio-fio e a fachada de um bar está a mesa de onde, quando se dá as costas para o boteco, pode-se ver o rio do outro lado da rua e imaginar a rua do outro lado do rio. Sentando-se de costas para o rio pode-se ver – tarefa que exige tanta sensibilidade quanto imaginar a rua do outro lado do rio, com sua fumaça e papéis de pipoca rolando pela sarjeta – pequenas tragédias vertendo de copos de cachaça e melodias chorosas.

Enfim, ignorando-se a rua e o bar o que se vê é uma compulsão de pessoas que, se não são empurradas pelo vento, movem-se como se tivessem aqueles por modelo de conduta. Caso seu impulso fosse um vento, nada ficaria de pé na cidade. Estivesse a mesa coberta por uma toalha ou pano qualquer com seu habitual adereço ou apenas sustentando um porta-guardanapos, nua ficaria e talvez nem ficasse de pé.

É para essa mesa, por entre essas pessoas, que caminha Natália Nunes. Ela mora a duas quadras do rio. Em seu caminho diário para a mesa nunca consegue se decidir entre montar o quebra-cabeça do verso que não sai da memória ou desesperadamente apreender algo que seja da vida de cada pessoa que lhe cruza o caminho. Há, ainda, o cipoal sonoro que compõe sua vizinhança: ônibus, ambulâncias, buzinas. Os vendedores e seus microfones. Os cheiros fantásticos que, sob a umidade das árvores, sobem das bancas de frutas espalhadas calçada afora.

Quando Natália vai a mesa, vai por esse meio entre líquido e cheiroso, entre translúcido e afetuoso. Senta-se. Alguém dentro do bar se dá conta de sua presença. Vem de encontro à mesa. Natália espera de costas para o rio.
***

Na noite anterior havia percorrido parte de seu trajeto doméstico – pequena diversão solitária, que como várias pequenas coisas conferem pedaços de sentido a vida – sem acender luz qualquer. A mobília escassa e a claridade da rua facilitavam seu estranho ritual de procurar as sombras mais suaves, mais suaves ou não se mais luzes havia acesas na rua, ou se já era tarde, ou que fase da lua etc.

Porque apaixonada pela luz, Natália sempre a procura onde esta aparece mais frágil. Uma cadeira ou mesa ou quadro que se espalha pela parede: sempre fica a impressão de que as coisas estão se diluindo e, por serem demasiado escassas e necessárias, Natália acende a luz não mais de dez minutos após começar seu estranho ritual de busca por tons e meios-tons fugidios. Acende a luz e despe-se como se aquilo fosse natural. Toma banho, veste-se como se natural também o fosse. Deita, dorme, acorda. Mais um dia de trabalho pela frente. Antes do dia, porém, outra noite. Paralela. Misto de bem e mal dormida, faria Natália acordar um tanto ansiosa.

Algo como um sonho se passou de forma tão estranha que – durante os momentos mal dormidos – parecia não haver tempo. Só a vontade e a necessidade de acordar reprimidas pela impotência de fazê-lo. Resignada, sofria as angústias de um sonho que lhe chegava as carnes como suor, tremores ou contrações.

Acorda Natália. Sai sem uma razão realmente sua para sair. Sai para o trabalho. Desce a escada, observa o porteiro pelo canto do olho e ganha a rua. Compra uma maçã, dobra a esquina. A idéia do rio vem a sua cabeça acompanhada pelo cheiro do rio. A maciez tranqüila da superfície nervosa de água e movimento lhe sussurra nos ouvidos carícias de marolas. Impassível, segue três quadras em um trajeto paralelo ao cordão por onde malabaristicamente pescadores se equilibram sob a vida. Segue a esquina. Dá as costas ao rio. Continua, inquieta.

2.12.05

palavra

A palavra é...
A palavra é...
A palavra é...
A palavra é...
... a palavra é...
A palavra é
qualquer coisa
que seja em
PALAVRA

25.11.05

Luz

Louvemos o mundo da luz
Enclausurada, direcionada
Louvemos o mundo onde os 40 chega aos vinte
Onde as palavras não fazem sentido
na contra-mão, fora do sentido, da explicação

louvemos o mundo explicado,
compreendido
onde lagartos vomitam talões de cheque
e cartões de crédito
o mundo reconquistado
pelos esquadros parnasianos

se a luz comporta-se protocolarmente,
façamos o mesmo

a música já acabou, eles nos dizem

Visão

Precisamos de outra música
sem sentido, placa ou sinalização

a luz dança suave pelos meus
cabelos
leva-os um a um para a festa
estão felizes
do outro lado tudo não faz sentido
conversas e passos se entrelaçam
e parecem bem assim
ouve-se uma música distante
ela flutua sorrateiramente
em busca de olhos
em transe
vê-se o impossível

Vento

Ouvidos Tampados
se dilaceram pela cidade

desprovidos de bengala, cão ou guia
tropeçam, vacilam

torturados por sirenes, ônibus,
motos, carros, vendedores, apitos

mas continuam em busca do que só as árvores
saberiam descrever

O ralo do rio leva tudo embora e tateio o

Vento

21.11.05

E agora, Maurício?

E agora, Maurício?[*]

E agora, Maurício? Foi expulso do petit? Quem mandou ser gauche na vida? Por meio desta, felicito-lhe. Em outra oportunidade já havia perguntado o porquê de sua permanência em meio tão avesso a sua personalidade e até mesmo a sua história. Confesso-lhe que tudo isso, essa mudança que tanto separa o preto do branco, o passado do futuro (não direi o joio do trigo) suscita algumas reflexões sobre essa nossa trajetória comum. Agora, no meu som, Tom Zé pergunta: com quantas mortes no peito se faz a seriedade? Com quantos quilos de medo se faz uma tradição? Não imaginei nunca que poderia colocar perguntas de tal monta relacionadas a nossa turma. De começo tão intenso, de tantos planos: tínhamos o mundo ou era ele que nos tinha. Se tal ou qual não importa, já que agora vivemos no país da inocência perdida. Outra questão: se perdemos a inocência isso significa que, no final das contas, bem medido e bem pesado, foi bom ou ruim este curso que fizemos? Que valeu a pena, disso não há dúvida. Mas, valerá, ainda? É por demais estreita a bitola com a qual nos querem moldar. Contudo, bem ao seu estilo, você dirá (ou não?) que é possível e necessário mudar. Que nós podemos construir um espaço menos árido, até, que existe vida após a morte. Não sei. De um poeta marginal quase inconsciente, de tanto beber, saiu o verso: a vingança do sol é fazer sombra. Certa vez você me convidou para uma reunião não sei pra que lá no petit. E foi lá mesmo que ouvi da boca convicta de um de seus ex-companheiros que vocês eram uma elite dentro do curso. Poucas vezes me senti tão enojado dentro deste cfch que se esvaece pelos próprios poros. Agora penso que é mais ou menos a mesma coisa que ler o Giddens dizer que eles (europeus e anglo-saxões) é que são os ocidentais. Não contesto. Realmente eles é que são os ocidentais. Foram eles os inventores do ocidente, eu é que não fui. Minha mão nem está amarela... Mas, voltando ao petit, acredito ser melhor mudar de assunto e retornar às reflexões anteriores sobre nossa curta trajetória. Por vezes divergente mas nunca excludente de idéias, em nome de nada. Você não viu mas na nossa primeira aula, uma das melhores, Normando, três cigarros na mão, chapéu, óculos escuros, todos os colares no pescoço, em pé sobre a mesa do altar nos disse: “o que eles querem é que vocês digam: oh captain, my captain”. Profecia? Experiência própria? O fato é que eles querem, os que querem, que baixemos a cabeça agora para garantir o direito de levantá-la num futuro vindouro, garantido pela messiânica diplomacia titulada. Que levem os anéis, os de formatura inclusive, que não valem um bom aperto de mão, mas não esqueçam da correntinha. Voltando ao petit, é melhor mudar de assunto, é melhor pensar nessas várias questões colocadas (em menos de quatro anos!) nenhuma, embora, resolvida. Mas é bom que estejam pelo menos colocadas, contra a sólida sombra do pensamento único. Capricho do sol, ou fatalidade da dinâmica da vida????

Não me estenderei mais.
Abraço,

Ronaldo Moura.
[*] Dedico esse texto a Tom Zé, livre demente, pós-doidorado por aí-afora. Tão lúcido desde muito tempo atrás.

Às margens do capibaribe

Às margens do capibaribe
ocorre vegetação distinta
vegetação onívora, recicladora

o ambiente em que vive
desde sempre
e para sempre
é um rio de miséria navegado
por altos prédios deslocados

a miséria é a realidade

as imagens multiplicam-se e já
estão na sua lama-sangue
tão impregnados que fazem
da penúria um ancoradouro
de alegrias

pequenas pétalas de
humanidade
que são lançadas ao rio
e não apodrecem

no entanto
a miséria está lá,
projetando-se nas pessoas –
e as pessoas nela –
infinitamente
como
dois espelhos que se encaram

Ponte

meia ponte
me liga ao mundo
a outra metade alcança a vista

Esquina

Na esquina
Quem passa só vê a metade
Na esquina
só se percorre a meio do caminho

na esquina que eu vejo
só a metade me vê

na esquina que me divide
dois caminhos se cruzam
e se desmancham

de esquina em esquina é que se conhece
a metade de tudo